domingo, 7 de abril de 2013

IGREJA MUDA COM FRANCISCO PARA QUE NADA MUDE

         A renúncia de Bento XVI e a nomeação do novo papa Francisco sacodem a Igreja Católica e concentram a atenção da opinião pública. Sopram ventos de supostas mudanças no Vaticano que contagiam a opinião pública. A grande imprensa enaltece as qualidades do argentino Jorge Mario Bergoglio (simplicidade, humildade, preocupação com os pobres) e minimiza os seus defeitos: cumplicidade com a ditadura militar do seu país e o seu ultra conservadorismo nas questões de costumes (oposição ao aborto, à união homossexual, aos preservativos, à educação sexual). As inúmeras denúncias sobre o seu obscuro passado obrigou a Santa Sé a vir a público para desmenti-las, alegando inexistência de provas contra Bergoglio e que essas denúncias seriam “calúnias de setores anti-clericais”.
         Primeiro Bento XVI renunciou inesperadamente - após muitos séculos sem renúncia de um papa – conseqüência das disputas internas que dilaceram a Igreja, principalmente, os escândalos envolvendo corrupção no Banco do Vaticano (oficialmente denominado Instituto para Obra Religiosas) - que o próprio Vaticano apelidou de Vatileaks - coisa que se perpetua há décadas. Nos anos 80, estourou um escândalo sobre as vinculações do Banco do Vaticano com o Banco Ambrosiano e a máfia italiana, quando um banqueiro apareceu enforcado sob uma ponte do Tâmisa, em Londres. Desta feita, os novos escândalos causaram mal estar na Itália e na União Européia. Isso resultou na demissão por Bento XVI do seu amigo banqueiro Ettore Gotti Tedeschi. Como conseqüência, o Papa encomendou uma investigação a três cardeais. O relatório apresentado teria sido o estopim da renúncia, relatando corrupção no Banco do Vaticano e escândalos sexuais no núcleo da Santa Sé. Fala-se que esse relatório permanece secreto, apesar do seu vazamento, não sendo acessível nem mesmo aos cardeais membros do conclave.
         Essa renúncia é uma expressão das brigas internas entre corporações religiosas, verdadeiras máfias, pelo poder na Igreja. Bento XVI é vinculado à Opus Dei e Francisco à Companhia de Jesus. Todas têm em comum o reacionarismo político e social, marca registrada da própria Igreja, de conjunto. Os setores progressistas, tais como a Teologia da Libertação, cujos expoentes no Brasil são Leonardo Boff e Frei Beto, foram virtualmente eliminados, perseguidos desde o papado de João Paulo II. Recorde-se que Boff foi punido com o “silêncio obsequioso” e excomungado por Ratzinger quando chefe da comissão para a Doutrina da Fé (nome atual da Santa Inquisição). Desde então, a Igreja aniquilou a sua ala esquerda (na Argentina, não sem a ajuda da ditadura militar que assassinou centenas de membros dessa corrente, sob o silêncio da Igreja).


A CUMPLICIDADE DA IGREJA ARGENTINA COM A REPRESSÃO

         Os fatos são evidentes. Existem dezenas de testemunhos de cumplicidade direta da cúpula da Igreja com a ditadura. Há jornalistas de direita, portanto insuspeitos, que atestam pelo menos a omissão da Igreja. A própria Igreja admitiu não ter feito o possível contra os atos da ditadura e por isso pediu perdão. Não se tratou de covardia pessoal, porque a Igreja, como instituição universal, é muito mais forte que qualquer ditadura de terceiro mundo. Nessas condições, omissão e cumplicidade são a mesma coisa. Dispensa comprovação o fato de que a ultraconservadora Igreja Católica se beneficiou com a amputação pela ditadura da sua ala esquerda. O certo é que, pelo menos na prática, houve uma divisão de tarefas entre os militares repressores e a alta hierarquia da Igreja na luta contra a esquerda católica e a esquerda em geral. Todos estiveram unidos na erradicação do inimigo comum, o que chamaram genericamente de comunismo. A Igreja acobertou a repressão e deu apoio político, ideológico e espiritual aos militares. Estes retribuíram seqüestrando, torturando e assassinando os inimigos comuns. É emblemática a foto de Bergoglio dando a comunhão a Videla. A história registrou uma promiscuidade completa entre a cúpula de batina e a junta militar.

AS DENÚNCIAS CONTRA BERGOGLIO

         Seriam essas denúncias, como afirma o Vaticano, “calúnias anti-clericais” ou estariam comprovadas? Existem dezenas de testemunhos imputando diretamente Jorge Bergoglio, inclusive por membros da Igreja, que não se enquadram no conceito de anti-clericais. Existem também intelectuais que o defendem, como Perez Esquivel, contrariando esses testemunhos e os demais fatos que são de domínio público, como a vinculação da Igreja com a ditadura. É muito citado o caso dos jesuítas Orlando Yorio e Francisco Jalics, seqüestrados e torturados, segundo as evidências, com a cumplicidade de Jorge Bergoglio. Jalics diz ter se reconciliado com Bergoglio, não o incrimina e também não o absolve. Mas a própria reconciliação pressupõe um rompimento anterior. Yorio morreu o denunciando, fato reafirmado pelos seus irmãos.
         Não menos divulgado é o assassinato da católica Helena de La Quadra, do seu marido e o seqüestro da filha do casal, nascida no cativeiro e cujo paradeiro não se conhece até hoje. Os seus pais procuraram em vão o auxílio de Bergoglio, então chefe dos jesuítas, que lavou as mãos como Pilatos. Bergoglio foi interrogado em 2010 no processo dos torturadores da ESMA (Escola de Mecânica da Armada – um dos centros de tortura) e declarou desconhecer o caso de Helena e sua filha, e também desconhecer o próprio fato das centenas de crianças seqüestradas, do que teria tomado conhecimento apenas nos últimos anos. Entretanto, o seqüestro de crianças pela ditadura é público e notório pelo menos desde 1983, quando foi denunciado pelas Avós da Praça de Maio. Desde então se sabe do Plano Sistemático de Roubo de Bebês pelos militares, com participação do Movimento Familiar Cristão, instituição da Igreja. Somente Bergoglio ignorou na Argentina, durante vinte anos após os fatos terem sido tornados públicos, o seqüestro de bebês, a participação da Igreja, e nem sequer lembrou-se de ter sido procurado pelo pai de Helena de La Quadra em 1977.
         Todos esses fatos foram relatados no livro do jornalista Horácio Verbitsky, que arrola outros tantos testemunhos. Em face dessas denúncias, achamos muito provável a responsabilidade pessoal de Jorge Bergoglio nesses acontecimentos macabros. Em qualquer caso, é certo que Bergoglio mentiu no processo dos torturadores da ESMA dizendo ignorar o rapto de crianças pela ditadura, demonstrando o seu caráter dissimulado. Note-se que Bergoglio negou-se a depor como um simples mortal no processo, reivindicando um dos tantos odiosos privilégios que desfrutam os notáveis da Igreja, de somente depor na sede episcopal. Por igual empecilho e acobertamento judicial, até hoje a justiça francesa está esperando o seu depoimento sobre a morte do padre francês Gabriel Longueville.
         Mesmo que ignoremos esses fatos, o seu conluio político e moral com a ditadura é incontestável. Por exemplo, a sua íntima amizade com o almirante Emílio Massera, ideólogo do regime, a favor de quem intercedeu para a concessão da medalha de Honra ao Mérito pela Universidade de Salvador, dirigida pelos jesuítas. Fez jus ao seu passado de membro da Guarda de Ferro, organização da ultra-direita peronista. Não por acaso, foi contra a anulação da lei de anistia aos torturadores, propondo em troca a “reconciliação nacional”, ou seja, a impunidade. Também não foi casual a saudação recebida dos 44 torturadores da La Perla (centro de torturas) ao comparecerem à seção do tribunal ostentando um broche com as cores do Vaticano, logo após a sua ascensão ao trono de Papa.
         Contra si pesa o repúdio das Avós da Praça de Maio, dos familiares das vítimas, dos estudiosos da repressão, como Verbitsky, e da opinião pública mais esclarecida. E a seu favor o apoio dos bajuladores de plantão e dos ingênuos. 

O QUE MUDA NA IGREJA COM FRANCISCO?

         Todas as aspirações de mudança insinuadas e propagadas com a posse de Francisco são ilusões, incompatíveis com a sua história e com a história da própria Igreja. Esta continuará, como sempre, com a sua postura medieval em todas as questões morais importantes, em nada evoluindo em relação ao “reinado” de Bento XVI: contra a homossexualidade, o casamento gay, a pílula, a camisinha, o aborto, o celibato dos padres e a favor da posição subalterna da mulher. Politicamente também nada muda. A Igreja continuará como braço da extrema direita fascistizante, contra tudo o que é ou pareça ser mais progressista. Na ausência de um movimento revolucionário, se voltará contra o nacionalismo burguês, mesmo domesticado. Dará seu apoio ao imperialismo nas suas investidas contra as lutas de libertação nacional. Apoiará o sionismo judeu contra os palestinos, os árabes e persas (Irã). Continuará como um dos principais instrumentos políticos do capital financeiro contra os povos.
         Mesmo que Francisco represente a continuidade de tudo o que é retrógrado, não se pode afirmar que nada mudará no seu reinado. A sua escolha como Papa não foi casual. Diante da profunda crise que corrói a Igreja, esta precisa aparentar mudança para que nada mude, como aconselhou Maquiavel. E essa “mudança” já começou desde o primeiro dia do seu pontificado: o culto à simplicidade, à moralidade e a preocupação com os pobres. A sua política à frente da Igreja será provavelmente semelhante ao que fez na Argentina: as suas preocupações verbais com a pobreza, com o trabalho escravo, o tráfico de pessoas e as denúncias contra a corrupção, desde Menen até Kirchner.
         Se substituirmos a análise superficial por uma mais crítica, aparecerão as enormes contradições. A pretensa preocupação com os pobres se resume a um jogo de cena se a confrontarmos com o seu combate mortal a todo setor da Igreja preocupado com os pobres e com a sua ojeriza a todo movimento reivindicativo dos trabalhadores. Não defende qualquer reivindicação importante destes. Assim como de “boas intenções o inferno está cheio”, os pobres e os trabalhadores mais conscientes estão cheios da demagogia barata com as suas necessidades.
         O mesmo se diga do seu suposto combate à corrupção, que não vai além de declarações bem intencionadas e que estão em flagrante contradição com a corrupção que assola o Vaticano. O inimigo maior sempre está em casa. Contra a corrupção da Igreja Bergoglio nunca levantou um dedo ou a voz. A sua eleição como Papa é a prova maior de que é amigo da corrupção interna, a qual protegerá, o que não é incompatível com medidas cosméticas.
         A sua moralidade também não passou na prova dos nove: acobertou os padres pedófilos argentinos Edgardo Storni e Júlio Cesar Grassi, condenados por pedofilia pela justiça e “absolvidos” pela igreja. O mesmo aconteceu com o padre torturador Von Wernich, também condenado pela justiça e mantido incólume pela Igreja.
         Todo o “progressismo” do cardeal Bergoglio na Argentina não passou de um populismo demagógico de direita para enganar ingênuos. Esse populismo verbal e aparente provavelmente seja o que podemos esperar de Francisco como chefe do Vaticano. Foi escolhido exatamente por isso, para dar uma fachada mais atrativa à Igreja. Mas por trás dessa máscara se esconde a velha cara horrenda de sempre.
23 de março 2013.






        

        

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