A renúncia de Bento XVI e a nomeação do
novo papa Francisco sacodem a Igreja Católica e concentram a atenção da opinião
pública. Sopram ventos de supostas mudanças no Vaticano que contagiam a opinião
pública. A grande imprensa enaltece as qualidades do argentino Jorge Mario
Bergoglio (simplicidade, humildade, preocupação com os pobres) e minimiza os seus
defeitos: cumplicidade com a ditadura militar do seu país e o seu ultra
conservadorismo nas questões de costumes (oposição ao aborto, à união
homossexual, aos preservativos, à educação sexual). As inúmeras denúncias sobre
o seu obscuro passado obrigou a Santa Sé a vir a público para desmenti-las,
alegando inexistência de provas contra Bergoglio e que essas denúncias seriam
“calúnias de setores anti-clericais”.
Primeiro Bento XVI renunciou
inesperadamente - após muitos séculos sem renúncia de um papa – conseqüência
das disputas internas que dilaceram a Igreja, principalmente, os escândalos
envolvendo corrupção no Banco do Vaticano (oficialmente denominado Instituto
para Obra Religiosas) - que o próprio Vaticano apelidou de Vatileaks - coisa
que se perpetua há décadas. Nos anos 80, estourou um escândalo sobre as
vinculações do Banco do Vaticano com o Banco Ambrosiano e a máfia italiana,
quando um banqueiro apareceu enforcado sob uma ponte do Tâmisa, em Londres.
Desta feita, os novos escândalos causaram mal estar na Itália e na União
Européia. Isso resultou na demissão por Bento XVI do seu amigo banqueiro Ettore
Gotti Tedeschi. Como conseqüência, o Papa encomendou uma investigação a três
cardeais. O relatório apresentado teria sido o estopim da renúncia, relatando
corrupção no Banco do Vaticano e escândalos sexuais no núcleo da Santa Sé.
Fala-se que esse relatório permanece secreto, apesar do seu vazamento, não sendo
acessível nem mesmo aos cardeais membros do conclave.
Essa renúncia é uma expressão das
brigas internas entre corporações religiosas, verdadeiras máfias, pelo poder na
Igreja. Bento XVI é vinculado à Opus Dei e Francisco à Companhia de Jesus. Todas
têm em comum o reacionarismo político e social, marca registrada da própria
Igreja, de conjunto. Os setores progressistas, tais como a Teologia da
Libertação, cujos expoentes no Brasil são Leonardo Boff e Frei Beto, foram
virtualmente eliminados, perseguidos desde o papado de João Paulo II.
Recorde-se que Boff foi punido com o “silêncio obsequioso” e excomungado por
Ratzinger quando chefe da comissão para a Doutrina da Fé (nome atual da Santa
Inquisição). Desde então, a Igreja aniquilou a sua ala esquerda (na Argentina,
não sem a ajuda da ditadura militar que assassinou centenas de membros dessa
corrente, sob o silêncio da Igreja).
A CUMPLICIDADE DA IGREJA
ARGENTINA COM A REPRESSÃO
Os fatos são evidentes. Existem dezenas de
testemunhos de cumplicidade direta da cúpula da Igreja com a ditadura. Há
jornalistas de direita, portanto insuspeitos, que atestam pelo menos a omissão
da Igreja. A própria Igreja admitiu não ter feito o possível contra os atos da
ditadura e por isso pediu perdão. Não se tratou de covardia pessoal, porque a
Igreja, como instituição universal, é muito mais forte que qualquer ditadura de
terceiro mundo. Nessas condições, omissão e cumplicidade são a mesma coisa.
Dispensa comprovação o fato de que a ultraconservadora Igreja Católica se
beneficiou com a amputação pela ditadura da sua ala esquerda. O certo é que,
pelo menos na prática, houve uma divisão de tarefas entre os militares
repressores e a alta hierarquia da Igreja na luta contra a esquerda católica e
a esquerda em geral. Todos estiveram unidos na erradicação do inimigo comum, o
que chamaram genericamente de comunismo. A Igreja acobertou a repressão e deu
apoio político, ideológico e espiritual aos militares. Estes retribuíram
seqüestrando, torturando e assassinando os inimigos comuns. É emblemática a
foto de Bergoglio dando a comunhão a Videla. A história registrou uma
promiscuidade completa entre a cúpula de batina e a junta militar.
AS DENÚNCIAS CONTRA
BERGOGLIO
Seriam essas denúncias, como afirma o
Vaticano, “calúnias anti-clericais” ou estariam comprovadas? Existem dezenas de
testemunhos imputando diretamente Jorge Bergoglio, inclusive por membros da
Igreja, que não se enquadram no conceito de anti-clericais. Existem também
intelectuais que o defendem, como Perez Esquivel, contrariando esses
testemunhos e os demais fatos que são de domínio público, como a vinculação da
Igreja com a ditadura. É muito citado o caso dos jesuítas Orlando Yorio e
Francisco Jalics, seqüestrados e torturados, segundo as evidências, com a
cumplicidade de Jorge Bergoglio. Jalics diz ter se reconciliado com Bergoglio,
não o incrimina e também não o absolve. Mas a própria reconciliação pressupõe
um rompimento anterior. Yorio morreu o denunciando, fato reafirmado pelos seus
irmãos.
Não menos divulgado é o assassinato da
católica Helena de La Quadra, do seu marido e o seqüestro da filha do casal,
nascida no cativeiro e cujo paradeiro não se conhece até hoje. Os seus pais
procuraram em vão o auxílio de Bergoglio, então chefe dos jesuítas, que lavou
as mãos como Pilatos. Bergoglio foi interrogado em 2010 no processo dos
torturadores da ESMA (Escola de Mecânica da Armada – um dos centros de tortura)
e declarou desconhecer o caso de Helena e sua filha, e também desconhecer o
próprio fato das centenas de crianças seqüestradas, do que teria tomado
conhecimento apenas nos últimos anos. Entretanto, o seqüestro de crianças pela
ditadura é público e notório pelo menos desde 1983, quando foi denunciado pelas
Avós da Praça de Maio. Desde então se sabe do Plano Sistemático de Roubo de
Bebês pelos militares, com participação do Movimento Familiar Cristão,
instituição da Igreja. Somente Bergoglio ignorou na Argentina, durante vinte
anos após os fatos terem sido tornados públicos, o seqüestro de bebês, a
participação da Igreja, e nem sequer lembrou-se de ter sido procurado pelo pai
de Helena de La Quadra em 1977.
Todos esses fatos foram relatados no
livro do jornalista Horácio Verbitsky, que arrola outros tantos testemunhos. Em
face dessas denúncias, achamos muito provável a responsabilidade pessoal de
Jorge Bergoglio nesses acontecimentos macabros. Em qualquer caso, é certo que
Bergoglio mentiu no processo dos torturadores da ESMA dizendo ignorar o rapto
de crianças pela ditadura, demonstrando o seu caráter dissimulado. Note-se que
Bergoglio negou-se a depor como um simples mortal no processo, reivindicando um
dos tantos odiosos privilégios que desfrutam os notáveis da Igreja, de somente
depor na sede episcopal. Por igual empecilho e acobertamento judicial, até hoje
a justiça francesa está esperando o seu depoimento sobre a morte do padre
francês Gabriel Longueville.
Mesmo que ignoremos esses fatos, o seu
conluio político e moral com a ditadura é incontestável. Por exemplo, a sua
íntima amizade com o almirante Emílio Massera, ideólogo do regime, a favor de
quem intercedeu para a concessão da medalha de Honra ao Mérito pela
Universidade de Salvador, dirigida pelos jesuítas. Fez jus ao seu passado de
membro da Guarda de Ferro, organização da ultra-direita peronista. Não por
acaso, foi contra a anulação da lei de anistia aos torturadores, propondo em
troca a “reconciliação nacional”, ou seja, a impunidade. Também não foi casual
a saudação recebida dos 44 torturadores da La Perla (centro de torturas) ao
comparecerem à seção do tribunal ostentando um broche com as cores do Vaticano,
logo após a sua ascensão ao trono de Papa.
Contra si pesa o repúdio das Avós da
Praça de Maio, dos familiares das vítimas, dos estudiosos da repressão, como
Verbitsky, e da opinião pública mais esclarecida. E a seu favor o apoio dos
bajuladores de plantão e dos ingênuos.
O QUE MUDA NA IGREJA COM
FRANCISCO?
Todas as aspirações de mudança
insinuadas e propagadas com a posse de Francisco são ilusões, incompatíveis com
a sua história e com a história da própria Igreja. Esta continuará, como
sempre, com a sua postura medieval em todas as questões morais importantes, em
nada evoluindo em relação ao “reinado” de Bento XVI: contra a homossexualidade,
o casamento gay, a pílula, a camisinha, o aborto, o celibato dos padres e a
favor da posição subalterna da mulher. Politicamente também nada muda. A Igreja
continuará como braço da extrema direita fascistizante, contra tudo o que é ou
pareça ser mais progressista. Na ausência de um movimento revolucionário, se
voltará contra o nacionalismo burguês, mesmo domesticado. Dará seu apoio ao
imperialismo nas suas investidas contra as lutas de libertação nacional. Apoiará
o sionismo judeu contra os palestinos, os árabes e persas (Irã). Continuará
como um dos principais instrumentos políticos do capital financeiro contra os
povos.
Mesmo que Francisco represente a
continuidade de tudo o que é retrógrado, não se pode afirmar que nada mudará no
seu reinado. A sua escolha como Papa não foi casual. Diante da profunda crise
que corrói a Igreja, esta precisa aparentar mudança para que nada mude, como
aconselhou Maquiavel. E essa “mudança” já começou desde o primeiro dia do seu
pontificado: o culto à simplicidade, à moralidade e a preocupação com os
pobres. A sua política à frente da Igreja será provavelmente semelhante ao que
fez na Argentina: as suas preocupações verbais com a pobreza, com o trabalho
escravo, o tráfico de pessoas e as denúncias contra a corrupção, desde Menen
até Kirchner.
Se substituirmos a análise superficial
por uma mais crítica, aparecerão as enormes contradições. A pretensa
preocupação com os pobres se resume a um jogo de cena se a confrontarmos com o
seu combate mortal a todo setor da Igreja preocupado com os pobres e com a sua
ojeriza a todo movimento reivindicativo dos trabalhadores. Não defende qualquer
reivindicação importante destes. Assim como de “boas intenções o inferno está
cheio”, os pobres e os trabalhadores mais conscientes estão cheios da demagogia
barata com as suas necessidades.
O mesmo se diga do seu suposto combate
à corrupção, que não vai além de declarações bem intencionadas e que estão em
flagrante contradição com a corrupção que assola o Vaticano. O inimigo maior
sempre está em casa. Contra a corrupção da Igreja Bergoglio nunca levantou um
dedo ou a voz. A sua eleição como Papa é a prova maior de que é amigo da
corrupção interna, a qual protegerá, o que não é incompatível com medidas
cosméticas.
A sua moralidade também não passou na
prova dos nove: acobertou os padres pedófilos argentinos Edgardo Storni e Júlio
Cesar Grassi, condenados por pedofilia pela justiça e “absolvidos” pela igreja.
O mesmo aconteceu com o padre torturador Von Wernich, também condenado pela
justiça e mantido incólume pela Igreja.
Todo o “progressismo” do cardeal
Bergoglio na Argentina não passou de um populismo demagógico de direita para
enganar ingênuos. Esse populismo verbal e aparente provavelmente seja o que
podemos esperar de Francisco como chefe do Vaticano. Foi escolhido exatamente
por isso, para dar uma fachada mais atrativa à Igreja. Mas por trás dessa
máscara se esconde a velha cara horrenda de sempre.
23 de março 2013.
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