sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

UMA CRÍTICA MARXISTA DO ANARQUISMO

                                                       
         O presente texto pretende ser uma critica marxista séria sobre as concepções anarquistas, tomando como base textos de Rafael da Silva (membro da FARJ), da UNIPA, de Daniel Guérin, de Bakunin, de um lado, e as obras de Marx, Engels e Lênin, de outro.
       
        Rafael se queixa das críticas “desonestas” ao anarquismo. Nega que este seja idealista, individualista, neoliberal, que queira destruir imediatamente o Estado, e seja contra a política e o poder. O anarquismo teria “princípios político ideológicos muito bem definidos”. Certamente, os têm, mas são confusos e contraditórios. Rafael tenta negar os seus princípios básicos. Pouco nos diz sobre o que o anarquismo efetivamente é. Para nós, o anarquismo é individualista, embora também seja coletivista; é idealista, embora tente se apoiar no materialismo; é utópico, apesar da tentativa de ser concreto; é semi-liberal, embora combata o neoliberalismo.
        No Brasil, o anarquismo desperdiçou mais uma oportunidade, pelos seus métodos vanguardistas, que afugentaram a juventude e atraíram o repúdio popular. Esse vanguardismo, praticado por “anti-autoritários”, é profundamente autoritário, porque não consulta ninguém, expressão exacerbada de individualismo. Infelizmente, certas correntes “marxistas” aplaudiram essa inconseqüência. Essa prática se assemelha ao método praticado pelo anarquismo no século XIX (Kropotkin, por exemplo; método abençoado também por Bakunin, na Rússia). Aliás, foi o repúdio a esses métodos suicidas dentro do anarquismo, que deu origem ao anarcosindicalismo coletivista. Hoje, o anarquismo brasileiro regride ao pior do anarquismo antigo.

O individualismo
        O texto de Rafael afirma: “O anarquismo também não é sinônimo de individualismo ...”. “O individualismo sempre foi historicamente marginal no anarquismo”. “Bakunin, Kropotkin e Malatesta foram duros críticos do individualismo”. Isso é uma meia verdade. Kropotkin defendeu o individualismo guerrilheiro. Stirner foi um defensor exacerbado do individualismo. Proudhon e Bakunin criticaram apenas os seus excessos, mas assimilaram a essência. Bakunin foi o mentor do sindicalismo coletivista espanhol, mas também foi o incentivador do “bandoleirismo” russo. Os seus princípios (anti-Estado, autonomismo, federalismo, anti-autoridade, autogestão) estão impregnados de individualismo.
        Vejamos o que diz o anarquista Daniel Guérin: “Sem dúvida que existe, pelo menos à primeira vista, divergências importantes entre o individualismo anarquista de Stirner (1806 – 1856) e o anarquismo societário. Uma análise mais detida revela, porém, que os partidários da liberdade total e os da organização social se encontram menos afastados uns dos outros que eles próprios imaginam e do que se pode crer à priori. O anarquista societário é também um individualista”. “Às hierarquias e às coações do socialismo ‘autoritário’, o anarquismo opõe duas fontes de energia revolucionária: o indivíduo e a espontaneidade das massas”. “ . . . não se pode conceber um libertário que não seja individualista”.
        Segundo Bakunin, o indivíduo é livre para participar ou não da sociedade, de “viver no deserto ou na floresta, entre as feras”. “A liberdade é o direito absoluto de cada ser humano de não procurar outra sanção para os seus atos que a da sua própria consciência, de determinar os seus atos exclusivamente pela sua vontade própria, e de ser, por conseqüência, apenas responsável perante os seus próprios princípios”. “Tenho o direito de dispor da minha pessoa à minha maneira, de ser malandro ou ativo, de viver honestamente, seja do meu trabalho, seja da exploração vergonhosa da caridade ou da confiança privadas”. “A liberdade não pode e não deve defender-se senão pela liberdade; e é um contra-senso perigoso querer feri-la, sob o pretexto especial de a proteger”. Na relação entre o coletivo e o individual, o último se sobrepõe. Os seus princípios coletivistas, base da nova sociedade - a auto-gestão e o federalismo - estão subordinados à autonomia absoluta. As comunas seriam absolutamente autônomas em relação à federação e o indivíduo é autônomo em relação às primeiras.
         Para o marxismo, a autoridade deve basear-se no princípio democrático de soberania da maioria, que o anarquismo rejeita em nome da soberania individual, o que torna inconseqüente o conceito coletivista. O marxismo também prevê a extinção da autoridade política mediante a extinção prévia das classes sociais. O idealismo anarquista dispensa a necessidade de condições materiais para o fim de toda autoridade e do Estado.

A política e o Estado
        Segundo Rafael: “O anarquismo também não é a negação da política e do poder. Os anarquistas defendem uma determinada concepção de política e de poder”. “O poder para os anarquistas está na tomada das fábricas, dos bairros, dos meios de produção . . .”. Dessa forma, o autor tergiversa os princípios do anarquismo, não nos esclarecendo de que política e poder é contra. Certamente, a tomada dos meios de produção é um ato político. Marx e Engels criticaram essa contradição de Bakunin, a sua negação da política e, ao mesmo tempo, a defesa da revolução, um fenômeno político por excelência. Nem por isso, o anarquismo deixa de negar a política em outros sentidos.  No século XIX, negou a luta política do proletariado por melhores condições de trabalho, principalmente, a luta parlamentar. Proudhon aceitava a participação parlamentar (tanto que foi deputado) e negava a luta econômica. Bakunin, ao contrário, aceitava a luta econômica e recusava a participação no parlamento (embora alegasse não ser por princípio) e qualquer reivindicação política, porque, alegava, seria legitimá-lo. Por exemplo: se opunha à luta por uma legislação trabalhista, de melhoria das condições de trabalho (contra o trabalho de crianças, trabalho noturno das mulheres e pela redução da jornada de trabalho).
        Hoje, concordamos que não se pode conquistar melhorias importantes através do parlamento. Mas essa mesma política, no século XIX, era um crime contra os interesses do proletariado, o qual, contrariando Bakunin, conquistou muitas vitórias nesse terreno. O anarquismo não nega a revolução política, mas nega a necessidade do Estado transitório do proletariado, um organismo político indispensável para a defesa política e militar dessa mesma revolução. Dispõe-se a defender a revolução através da autogestão e da federação das comunas e dos estados. Mas essa defesa será sempre prejudicada pela descentralização, enquanto a burguesia dispõe de um poder centralizado. Argumenta que a federação não impede a unidade. Isso seria verdadeiro apenas para o federalismo marxista, não para o anarquista, porque este condiciona a federação à autonomia absoluta.
        Rafael também afirma: “É completamente infundado e incorreto afirmar que os anarquistas desejam abolir o Estado imediatamente . . .”    . Isso é a negação dos princípios anarquistas. Ao propor abolir gradativamente o Estado, o autor torna a “emenda pior que o soneto”, porque o marxismo e o anarquismo sempre tiveram em comum a defesa da abolição imediata e radical do Estado burguês, divergindo sobre a necessidade ou não da sua substituição por um Estado Operário. Aquilo que sempre foi o melhor do anarquismo, agora é renegado.
        Dentro da social democracia (marxista, na época) surgiu, no fim do século XIX, uma corrente reformista liderada por Eduardo Bernstein, que negava a destruição do Estado burguês, defendendo a sua transformação gradativa, por meio de reformas, em socialismo. Parece que o autor, dentro do anarquismo, adere ao antigo reformismo “marxista”, que ainda é muito atual, porque é a política praticada pela maioria das correntes “marxistas” de hoje, embora não admitam, inclusive, as chamadas trotskistas. Nesse aspecto, excluídas as aparências e a retórica teórica, são sutis as diferenças práticas entre o “anarquismo” e o “marxismo” da atualidade.

O Estado e a autonomia
 Daniel Guérin, argumenta: “De maneira geral, a burocracia do Estado totalitário  vê com maus olhos a pretensão de autonomia da autogestão. Como antevia Proudhon, a burocracia não admite um poder estanho ao seu”. Pela razão inversa, a autogestão anarquista, baseada na autonomia absoluta, não pode admitir o Estado. Autogestão e Estado seriam pólos antagônicos. Para o marxismo, o Estado proletário é uma necessidade da repressão sobre a burguesia. A revolução social derrota o poder burguês, mas não extingue a burguesia como classe e não à derrota no plano internacional. A sua extinção é um processo mais ou menos longo. Enquanto a mesma subsistir, torna-se indispensável um poder dos trabalhadores, coisa que as comunas não podem representar, nem mesmo uma federação de nações sujeitas ao princípio anarquista da autonomia absoluta. Também o planejamento anarquista está em contradição com esse tipo de autonomia.
        Para o marxismo, a autonomia também é fundamental. Uma nação é livre para participar ou não da federação das nações e também o é para abandoná-la a qualquer momento. Mas a autonomia absoluta é a própria negação da federação e de qualquer princípio de sociedade. Toda federação na sociedade socialista implica na redução (parcial, voluntária, temporária, condicionada a certos limites e princípios) da autonomia. Para o materialismo dialético, não existe o absoluto, que é criação do idealismo e da metafísica. A realidade é relativa e concreta. A metafísica isola um ou mais elementos da realidade complexa (muitas vezes, realmente importantes) e lhes dá uma importância ideal, absoluta. É isso que faz o anarquismo com os conceitos de Estado, liberdade, autoridade e autonomia.
        Estado e autonomia não são incompatíveis, mas sim esta com o Estado burguês e o burocrático. Não é verdade que o Estado Operário tenha de ser necessariamente autoritário com os trabalhadores. Pode ser democrático para as massas, criação direta da autogestão. Uma administração central é indispensável não só para o planejamento econômico, uma questão administrativa, mas fundamentalmente para a repressão sobre a burguesia. Além da defesa contra a contra-revolução militar, é preciso impedir certas iniciativas individuais privadas, de acordo com uma política centralizada. Muitas vezes, não se pode abrir mão da repressão. Por exemplo: contra a especulação e o mercado negro. A centralização é incompatível com a autonomia absoluta e esta é uma caricatura da democracia operária. Serve mais aos interesses privados.
        O anarquismo entende de forma unilateral a democracia operária, apenas de baixo para cima. A mesma é uma via de duas mãos, tanto de baixo para cima, como de cima para baixo. A política unitária deve ser elaborada em congressos de delegados, que trazem posições previamente discutidas. Mas as resoluções dos congressos não são a soma das suas partes, mas uma síntese, muitas vezes, um acordo, que não fira os princípios comuns. O congresso é um momento privilegiado para a formação de opiniões. A proposta anarquista de mandatos imperativos, nada tem de democrática, porque inviabiliza essa síntese, e em última instância impede a unidade. É o individualismo se sobrepondo ao coletivo. A síntese representa a mão inversa, de cima para baixo, que complementa a democracia de baixo para cima.
        A autonomia absoluta é incompatível com qualquer delegação de poderes. Delegar poderes implica investir alguém de autoridade. A diferença do autoritarismo reside no fato de que essa autoridade é consentida, limitada, revogável, sujeita a uma política elaborada pelas bases e a princípios comuns. O anarquismo tem razão ao enfatizar a democracia de baixo para cima, mas assemelha-se ao liberalismo ao negar a democracia de cima para baixo.
        A autoridade central necessita de um aparato político e militar, para não ser uma idéia vazia. Esse aparato, por definição, é o Estado. O anarquismo, ao negar o Estado Operário, nega também, ou dificulta a repressão sobre a burguesia. A federação das comunas, desprovida desses instrumentos, representa um corpo desprovido de esqueleto. Quem quer os fins, deve querer também os meios. Todo Estado Operário corre efetivamente o risco – vide o estalinismo –  de se voltar contra os trabalhadores, caindo na influência da burguesia. A questão central é: se se pode dispensá-lo sem prejuízo para a revolução?

O partido e a espontaneidade
        O anarquismo dos seus fundadores não nega a necessidade de uma vanguarda consciente, mas o seu conceito de vanguarda se opõe ao partido como uma direção das massas. Toda direção seria autoritarismo. As massas não necessitariam de direção, apenas de alguém que lhes auxilie. Segundo o marxismo, uma direção não necessariamente deva ser autoritária. Dirigir é propor, tomar a iniciativa, convocar, aconselhar, criticar, conscientizar. O seu método é a persuasão e a confiança mútua, o oposto do autoritarismo. Infelizmente, não é uma divergência de terminologia. O anarquismo nega o partido com base no princípio de soberania da maioria, que seria autoritária. Defende a soberania individual.        Contra a necessidade de direção, opõe a espontaneidade das massas, exagerando as suas virtudes e subestimando as suas limitações. Idealiza as massas, que precisariam no máximo de um conselheiro, que não pode lhes “roubar” a iniciativa. Coloca a vanguarda atrás das massas. Nas revoluções espontâneas, isso realmente é verdadeiro. Mas o anarquismo transforma essa primazia das massas em regra geral, subestimando a importância do partido. A espontaneidade seria o elemento dominante na relação partido/massas.
        O marxismo também considera a espontaneidade fundamental. Nenhum partido pode provocar, quando queira, a sua mobilização, que tem, em geral, um elemento de surpresa. Cabe ao partido apoiar a mobilização espontânea. A revolução russa de fevereiro de 1917 foi espontânea, mas a de outubro foi planejada pelos bolcheviques. Se a espontaneidade é indispensável em qualquer revolução, a sua vitória final requer uma direção. Essa é uma lição da história. A clareza de objetivos pertence ao partido, expressa no seu programa. As massas não têm programa, porque não têm clareza de objetivos e também porque são heterogêneas. Existem massas e massas, as mais conscientes e as mais atrasadas. Não são iguais a si mesmas. Existem momentos de maior consciência e outros de passividade. O anarquismo não faz uma análise concreta da relação partido/massas.  Transforma essa relação num ideal abstrato, como uma via de mão única onde a espontaneidade é o elemento dominante. Idealiza massas que não existem.
        O marxismo entende que a ideologia dominante é a da classe dominante. A alienação das massas não impede a espontaneidade, mas impede a vitória final. Para esta, o partido é imprescindível. Ao subestimar a importância do partido, o anarquismo desarma os trabalhadores. 
         

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