O presente texto pretende ser uma
critica marxista séria sobre as concepções anarquistas, tomando como base
textos de Rafael da Silva (membro da FARJ), da UNIPA, de Daniel Guérin, de
Bakunin, de um lado, e as obras de Marx, Engels e Lênin, de outro.
Rafael
se queixa das críticas “desonestas” ao anarquismo. Nega que este seja
idealista, individualista, neoliberal, que queira destruir imediatamente o
Estado, e seja contra a política e o poder. O anarquismo teria “princípios
político ideológicos muito bem definidos”. Certamente, os têm, mas são confusos
e contraditórios. Rafael tenta negar os seus princípios básicos. Pouco nos diz
sobre o que o anarquismo efetivamente é. Para nós, o anarquismo é
individualista, embora também seja coletivista; é idealista, embora tente se
apoiar no materialismo; é utópico, apesar da tentativa de ser concreto; é
semi-liberal, embora combata o neoliberalismo.
No
Brasil, o anarquismo desperdiçou mais uma oportunidade, pelos seus métodos vanguardistas,
que afugentaram a juventude e atraíram o repúdio popular. Esse vanguardismo,
praticado por “anti-autoritários”, é profundamente autoritário, porque não
consulta ninguém, expressão exacerbada de individualismo. Infelizmente, certas
correntes “marxistas” aplaudiram essa inconseqüência. Essa prática se assemelha
ao método praticado pelo anarquismo no século XIX (Kropotkin, por exemplo;
método abençoado também por Bakunin, na Rússia). Aliás, foi o repúdio a esses
métodos suicidas dentro do anarquismo, que deu origem ao anarcosindicalismo
coletivista. Hoje, o anarquismo brasileiro regride ao pior do anarquismo
antigo.
O
individualismo
O
texto de Rafael afirma: “O anarquismo também não é sinônimo de individualismo
...”. “O individualismo sempre foi historicamente marginal no anarquismo”.
“Bakunin, Kropotkin e Malatesta foram duros críticos do individualismo”. Isso é
uma meia verdade. Kropotkin defendeu o individualismo guerrilheiro. Stirner foi
um defensor exacerbado do individualismo. Proudhon e Bakunin criticaram apenas
os seus excessos, mas assimilaram a essência. Bakunin foi o mentor do
sindicalismo coletivista espanhol, mas também foi o incentivador do
“bandoleirismo” russo. Os seus princípios (anti-Estado, autonomismo,
federalismo, anti-autoridade, autogestão) estão impregnados de individualismo.
Vejamos
o que diz o anarquista Daniel Guérin: “Sem dúvida que existe, pelo menos à
primeira vista, divergências importantes entre o individualismo anarquista de
Stirner (1806 – 1856) e o anarquismo societário. Uma análise mais detida
revela, porém, que os partidários da liberdade total e os da organização social
se encontram menos afastados uns dos outros que eles próprios imaginam e do que
se pode crer à priori. O anarquista societário é também um individualista”. “Às
hierarquias e às coações do socialismo ‘autoritário’, o anarquismo opõe duas
fontes de energia revolucionária: o indivíduo e a espontaneidade das massas”. “
. . . não se pode conceber um libertário que não seja individualista”.
Segundo
Bakunin, o indivíduo é livre para participar ou não da sociedade, de “viver no
deserto ou na floresta, entre as feras”. “A liberdade é o direito absoluto de
cada ser humano de não procurar outra sanção para os seus atos que a da sua
própria consciência, de determinar os seus atos exclusivamente pela sua vontade
própria, e de ser, por conseqüência, apenas responsável perante os seus
próprios princípios”. “Tenho o direito de dispor da minha pessoa à minha
maneira, de ser malandro ou ativo, de viver honestamente, seja do meu trabalho,
seja da exploração vergonhosa da caridade ou da confiança privadas”. “A
liberdade não pode e não deve defender-se senão pela liberdade; e é um
contra-senso perigoso querer feri-la, sob o pretexto especial de a proteger”. Na
relação entre o coletivo e o individual, o último se sobrepõe. Os seus princípios coletivistas, base da
nova sociedade - a auto-gestão e o federalismo - estão subordinados à autonomia
absoluta. As comunas seriam absolutamente autônomas em relação à federação
e o indivíduo é autônomo em relação às primeiras.
Para o marxismo, a autoridade deve basear-se
no princípio democrático de soberania da maioria, que o anarquismo rejeita em
nome da soberania individual, o que torna inconseqüente o conceito coletivista.
O marxismo também prevê a extinção da autoridade política mediante a extinção
prévia das classes sociais. O idealismo
anarquista dispensa a necessidade de condições materiais para o fim de toda
autoridade e do Estado.
A
política e o Estado
Segundo
Rafael: “O anarquismo também não é a negação da política e do poder. Os
anarquistas defendem uma determinada concepção de política e de poder”. “O
poder para os anarquistas está na tomada das fábricas, dos bairros, dos meios
de produção . . .”. Dessa forma, o autor tergiversa os princípios do
anarquismo, não nos esclarecendo de que política e poder é contra. Certamente,
a tomada dos meios de produção é um ato político. Marx e Engels criticaram essa
contradição de Bakunin, a sua negação da política e, ao mesmo tempo, a defesa
da revolução, um fenômeno político por excelência. Nem por isso, o anarquismo
deixa de negar a política em outros sentidos. No século XIX, negou a luta política do
proletariado por melhores condições de trabalho, principalmente, a luta parlamentar.
Proudhon aceitava a participação parlamentar (tanto que foi deputado) e negava
a luta econômica. Bakunin, ao contrário, aceitava a luta econômica e recusava a
participação no parlamento (embora alegasse não ser por princípio) e qualquer
reivindicação política, porque, alegava, seria legitimá-lo. Por exemplo: se opunha
à luta por uma legislação trabalhista, de melhoria das condições de trabalho (contra
o trabalho de crianças, trabalho noturno das mulheres e pela redução da jornada
de trabalho).
Hoje,
concordamos que não se pode conquistar melhorias importantes através do
parlamento. Mas essa mesma política, no século XIX, era um crime contra os
interesses do proletariado, o qual, contrariando Bakunin, conquistou muitas
vitórias nesse terreno. O anarquismo não nega a revolução política, mas nega a
necessidade do Estado transitório do proletariado, um organismo político
indispensável para a defesa política e militar dessa mesma revolução. Dispõe-se
a defender a revolução através da autogestão e da federação das comunas e dos
estados. Mas essa defesa será sempre prejudicada pela descentralização,
enquanto a burguesia dispõe de um poder centralizado. Argumenta que a federação
não impede a unidade. Isso seria verdadeiro apenas para o federalismo marxista,
não para o anarquista, porque este condiciona a federação à autonomia absoluta.
Rafael
também afirma: “É completamente infundado e incorreto afirmar que os
anarquistas desejam abolir o Estado imediatamente . . .” . Isso é a negação dos princípios anarquistas. Ao propor abolir
gradativamente o Estado, o autor torna a “emenda pior que o soneto”, porque o
marxismo e o anarquismo sempre tiveram em comum a defesa da abolição imediata e
radical do Estado burguês, divergindo sobre a necessidade ou não da sua substituição
por um Estado Operário. Aquilo que sempre foi o melhor do anarquismo, agora é
renegado.
Dentro
da social democracia (marxista, na época) surgiu, no fim do século XIX, uma
corrente reformista liderada por Eduardo Bernstein, que negava a destruição do
Estado burguês, defendendo a sua transformação gradativa, por meio de reformas,
em socialismo. Parece que o autor, dentro do anarquismo, adere ao antigo
reformismo “marxista”, que ainda é muito atual, porque é a política praticada
pela maioria das correntes “marxistas” de hoje, embora não admitam, inclusive,
as chamadas trotskistas. Nesse aspecto, excluídas as aparências e a retórica
teórica, são sutis as diferenças práticas entre o “anarquismo” e o “marxismo”
da atualidade.
O
Estado e a autonomia
Daniel Guérin, argumenta: “De maneira geral, a
burocracia do Estado totalitário vê com
maus olhos a pretensão de autonomia da autogestão. Como antevia Proudhon, a
burocracia não admite um poder estanho ao seu”. Pela razão inversa, a
autogestão anarquista, baseada na autonomia absoluta, não pode admitir o
Estado. Autogestão e Estado seriam pólos antagônicos. Para o marxismo, o Estado
proletário é uma necessidade da repressão sobre a burguesia. A revolução social
derrota o poder burguês, mas não extingue a burguesia como classe e não à
derrota no plano internacional. A sua extinção é um processo mais ou menos
longo. Enquanto a mesma subsistir, torna-se indispensável um poder dos
trabalhadores, coisa que as comunas não podem representar, nem mesmo uma
federação de nações sujeitas ao princípio anarquista da autonomia absoluta.
Também o planejamento anarquista está em contradição com esse tipo de
autonomia.
Para
o marxismo, a autonomia também é fundamental. Uma nação é livre para participar
ou não da federação das nações e também o é para abandoná-la a qualquer
momento. Mas a autonomia absoluta é a própria negação da federação e de
qualquer princípio de sociedade. Toda federação na sociedade socialista implica
na redução (parcial, voluntária, temporária, condicionada a certos limites e
princípios) da autonomia. Para o materialismo dialético, não existe o absoluto,
que é criação do idealismo e da metafísica. A realidade é relativa e concreta.
A metafísica isola um ou mais elementos da realidade complexa (muitas vezes,
realmente importantes) e lhes dá uma importância ideal, absoluta. É isso que
faz o anarquismo com os conceitos de Estado, liberdade, autoridade e autonomia.
Estado
e autonomia não são incompatíveis, mas sim esta com o Estado burguês e o burocrático.
Não é verdade que o Estado Operário tenha de ser necessariamente autoritário
com os trabalhadores. Pode ser democrático para as massas, criação direta da
autogestão. Uma administração central é indispensável não só para o
planejamento econômico, uma questão administrativa, mas fundamentalmente para a
repressão sobre a burguesia. Além da defesa contra a contra-revolução militar,
é preciso impedir certas iniciativas individuais privadas, de acordo com uma
política centralizada. Muitas vezes, não se pode abrir mão da repressão. Por
exemplo: contra a especulação e o mercado negro. A centralização é incompatível com a autonomia absoluta e esta é uma
caricatura da democracia operária. Serve mais aos interesses privados.
O anarquismo entende de forma unilateral a
democracia operária, apenas de baixo para cima. A mesma é uma via de duas mãos,
tanto de baixo para cima, como de cima para baixo. A política unitária deve ser
elaborada em congressos de delegados, que trazem posições previamente
discutidas. Mas as resoluções dos congressos não são a soma das suas partes,
mas uma síntese, muitas vezes, um acordo, que não fira os princípios comuns. O
congresso é um momento privilegiado para a formação de opiniões. A proposta
anarquista de mandatos
imperativos,
nada tem de democrática, porque inviabiliza essa síntese, e em última instância
impede a unidade. É o individualismo se sobrepondo ao coletivo. A síntese
representa a mão inversa, de cima para baixo, que complementa a democracia de
baixo para cima.
A autonomia absoluta é incompatível com
qualquer delegação de poderes. Delegar poderes implica investir alguém de
autoridade. A diferença do autoritarismo reside no fato de que essa
autoridade é consentida, limitada, revogável, sujeita a uma política elaborada pelas
bases e a princípios comuns. O anarquismo tem razão ao enfatizar a democracia
de baixo para cima, mas assemelha-se ao liberalismo ao negar a democracia de
cima para baixo.
A
autoridade central necessita de um aparato político e militar, para não ser uma
idéia vazia. Esse aparato, por definição, é o Estado. O anarquismo, ao negar o
Estado Operário, nega também, ou dificulta a repressão sobre a burguesia. A
federação das comunas, desprovida desses instrumentos, representa um corpo
desprovido de esqueleto. Quem quer os fins, deve querer também os meios. Todo
Estado Operário corre efetivamente o risco – vide o estalinismo – de se voltar contra os trabalhadores, caindo
na influência da burguesia. A questão central é: se se pode dispensá-lo sem
prejuízo para a revolução?
O
partido e a espontaneidade
O
anarquismo dos seus fundadores não nega a necessidade de uma vanguarda
consciente, mas o seu conceito de vanguarda se opõe ao partido como uma direção
das massas. Toda direção seria autoritarismo. As massas não necessitariam de
direção, apenas de alguém que lhes auxilie. Segundo o marxismo, uma direção não
necessariamente deva ser autoritária. Dirigir é propor, tomar a iniciativa,
convocar, aconselhar, criticar, conscientizar. O seu método é a persuasão e a
confiança mútua, o oposto do autoritarismo. Infelizmente, não é uma divergência
de terminologia. O anarquismo nega o partido com base no princípio de soberania
da maioria, que seria autoritária. Defende a soberania individual. Contra a necessidade de direção, opõe a
espontaneidade das massas, exagerando as suas virtudes e subestimando as suas
limitações. Idealiza as massas, que precisariam no máximo de um conselheiro,
que não pode lhes “roubar” a iniciativa. Coloca a vanguarda atrás das massas.
Nas revoluções espontâneas, isso realmente é verdadeiro. Mas o anarquismo
transforma essa primazia das massas em regra geral, subestimando a importância
do partido. A espontaneidade seria o elemento dominante na relação
partido/massas.
O
marxismo também considera a espontaneidade fundamental. Nenhum partido pode
provocar, quando queira, a sua mobilização, que tem, em geral, um elemento de
surpresa. Cabe ao partido apoiar a mobilização espontânea. A revolução russa de
fevereiro de 1917 foi espontânea, mas a de outubro foi planejada pelos
bolcheviques. Se a espontaneidade é indispensável em qualquer revolução, a sua
vitória final requer uma direção. Essa é uma lição da história. A clareza de
objetivos pertence ao partido, expressa no seu programa. As massas não têm
programa, porque não têm clareza de objetivos e também porque são heterogêneas.
Existem massas e massas, as mais conscientes e as mais atrasadas. Não são
iguais a si mesmas. Existem momentos de maior consciência e outros de
passividade. O anarquismo não faz uma análise concreta da relação partido/massas. Transforma essa relação num ideal abstrato,
como uma via de mão única onde a espontaneidade é o elemento dominante.
Idealiza massas que não existem.
O
marxismo entende que a ideologia dominante é a da classe dominante. A alienação
das massas não impede a espontaneidade, mas impede a vitória final. Para esta,
o partido é imprescindível. Ao subestimar a importância do partido, o
anarquismo desarma os trabalhadores.
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