Completam-se trinta anos
do fim da sanguinária ditadura argentina dos generais Videla, Galtiere,
Reynaldo Bignone (este, o General democrático, segundo Moreno) e do almirante
Emilio Massera (o amigo do Papa), entre outros. Essa ditadura foi responsável
pela morte e tortura de mais de trinta mil pessoas, segundo ela, “terroristas”,
mas na verdade, guerrilheiros urbanos, socialistas, democratas, membros da
Igreja e pessoas comuns. Esses crimes foram perdoados pelas leis conhecidas
como Ponto Final e Obediência Devida, depois revogadas no governo Néstor
Kirchner. Desde então, esses criminosos militares têm sido julgados e
condenados pela justiça argentina.
Em 12 de março último, o Tribunal Oral Federal de San Martin emitiu uma
sentença de prisão perpétua contra o último ditador, Gal. Reynaldo Bignone e
outros acusados por crimes de lesa-humanidade (torturas, execuções, rapto de
bebês), cometidos contra 20 vítimas, no centro de extermínio Campo de Mayo.
Bignone, que dirigiu a Argentina após a guerra das Malvinas até a redemocratização,
de 1982 a 1983, já havia sido condenado em outros processos. Essa substituição
do Gal. Leopoldo Galtiere pelo Gal. Reynaldo Bignone, Nahuel Moreno, dirigente
da LIT, considerou “Uma Revolução Democrática Triunfante”, título do seu livro
fruto de um informe apresentado ao Comitê Executivo Internacional da LIT, em
1983. Para desmascarar essa farsa, esses trinta anos não passaram em vão.
Um exemplo morenista de
Revolução Democrática
Nesse livro, Moreno apresenta o regime de Bignone como o melhor exemplo de
“revolução democrática”. Compara esse regime com outros, também oriundos de
quedas de ditaduras e de todos o considera a única “revolução democrática
triunfante” na Argentina. Vejamos as suas palavras: “Este informe parte
de um pressuposto básico: que a revolução democrática argentina já triunfou com
a caída de Galtiere e a assunção ao mando por Bignone”. E diz mais: “Muitos
companheiros se perguntarão a razão pela qual demos o nome de revolução a um
acontecimento que aparentemente se parece ao ocorrido repetidas vezes na
história argentina dos últimos cinqüenta anos: a passagem de um regime não
votado a outro que, sim, o é”. A isso o próprio Moreno responde: “O
atual processo é muito distinto ao posterior ao Cordobaço. Não é produto de uma
dosificação ou condicionamento do governo militar, senão de um fenômeno
abrupto, incontrolável, que se deu de repente sem que haja sido planejado nem
desejado por nenhum setor da classe dominante. Ninguém contava, dentro do mundo
oficial burguês ou burocrático, que no curto lapso de três meses passaríamos do
mais terrível dos regimes contrarevolucionários conhecidos no país a um regime
onde campearão mais ou menos todas as liberdades democráticas formais e de um
governo forte a um que cai sozinho. Da falta absoluta das mínimas liberdades,
passamos a liberdades democráticas muito amplas, quase absolutas ...”.
Essa transição do regime pode não ter sido “planejada”, mas foi perfeitamente
controlada pela ditadura, que nomeou Bignone em substituição à Galtiere. Para
Moreno, foi uma revolução democrática “levada
à cabo pelo povo trabalhador e não pela burguesia. Não se conhece nenhum regime
contrarevolucionário capitalista que tenha sido derrubado pela ação da
burguesia, que saibamos”. Isso é uma inverdade completa. Com a derrota da
Argentina para a Inglaterra nas Malvinas, os trabalhadores argentinos entraram
em ascenso, mas não é verdade que tenham derrubado a ditadura. Ao contrário,
esta tratou de reciclar-se exatamente para que nada mude no fundamental.
Repetiu-se o esquema clássico do fim da maioria das ditaduras: uma negociação
das elites para substituir o regime, sob seu estrito controle, antes que o povo
o faça. Somente Moreno não sabe disso. Chama essa substituição controlada da
ditadura de “Revolução Democrática Triunfante”. Segundo ele, “todo
triunfo em tempo de revolução democrática, é um triunfo do povo trabalhador e
jamais da burguesia”. Para ele, o triunfo da “revolução democrática”
pode se dar sob a direção de um general ditador e sustentada por partidos
burgueses. Para o marxismo, uma revolução é uma luta entre classes antagônicas.
Por esse motivo, o fato de a “revolução argentina” ter levado ao poder partidos
burgueses é a prova cabal da sua derrota. Moreno chama a derrota de vitória.
Revolução Permanente e Revolução
Democrática
Moreno apelida de revolução democrática
qualquer substituição de um regime ditatorial. Segundo ele: “O surgimento de
um novo tipo de regime contrarevolucionário de signo burguês, como os fascistas
e semi-fascistas, e a perda de peso do feudalismo nos países atrasados, levou
ao surgimento de um novo tipo de revolução democrática, a anti-capitalista e
anti-imperialista, não a anti-feudal”. Isso é completamente falso. A
existência de ditaduras burguesas não era novidade na época de Lênin, diferente
do que afirma, e Trotsky conviveu com a experiência do fascismo, mas nunca
considerou a queda de ditaduras revoluções democráticas. O marxismo define como
revolução democrática a derrubada de monarquias semi-feudais, coisa que não
existe mais. Foi o caso das três revoluções russas: 1905, fevereiro e outubro
de 1917.
A derrubada de uma ditadura nada tem a ver com revolução democrática. A
conquista de liberdades democráticas, dentro do capitalismo, não é uma
revolução, mas uma reforma democrática, necessária e preparatória da revolução
socialista. Os trabalhadores preferem uma democracia burguesa (que também é uma
ditadura) a um regime ditatorial, por isso lutam por maiores liberdades
democráticas. Mas a luta contra uma ditadura não é uma luta por liberdades
democráticas, mas pelo poder entre duas classes antagônicas. O proletariado
deve lutar exclusivamente pelo seu governo, disputando com a burguesia o poder
do país. A burguesia, que sustenta a ditadura, é obrigada a substituí-la por um
regime democrático. Em geral, faz um acordo com ela para uma transição pacífica.
Nada muda de fundamental para a mesma.
A substituição de uma ditadura pela burguesia, não pode ser considerada uma
vitória dos trabalhadores, mesmo que represente maiores liberdades
democráticas, porque o que está em jogo não é a ampliação dessas liberdades,
mas o poder de uma classe ou de outra. Desse ponto de vista, a substituição de
uma ditadura por um regime democrático burguês é uma derrota do proletariado,
porque os trabalhadores perderam para a burguesia a luta pelo poder. Estes
lutam por liberdades democráticas, mas jamais por um regime burguês, que são
coisas completamente distintas. Trotsky chama de “derrota democrática da
revolução proletária” o que Moreno denomina de “revolução democrática
triunfante”.
Lênin considerou a Revolução de Fevereiro/17 como uma revolução democrática –
embora mutilada – apenas de fevereiro a outubro de 1917. Após a Revolução de
Outubro, esta passou a ser a verdadeira revolução democrática, porque somente
ela destruiu os restos do feudalismo. Essa revolução foi a confirmação da
teoria da Revolução Permanente. Moreno, a partir da revolução cubana, começou a
questionar todos os princípios da Revolução Permanente: a direção do
proletariado e a necessidade do partido revolucionário. Sobre isso, afirma: “Entretanto,
já desde o triunfo da revolução cubana, nós havíamos teorizado sobre a situação
revolucionária, opinando que as quatro condições para o triunfo da revolução
proletária, colocadas por Trotsky, se haviam revelado equivocadas na revolução
chinesa, cubana e nas outras revoluções coloniais, porque não se haviam dado
nem sob a hegemonia classista do proletariado, nem tendo à sua frente o partido
marxista revolucionário”. Isso é parcialmente verdadeiro, portanto,
completamente falso. É verdade que não havia partido revolucionário, mas não é
verdade a ausência de hegemonia do proletariado ou que a mesma tenha sido do
campesinato. A hegemonia do proletariado se deu distorcidamente através da
influência da revolução russa sobre os partidos comunistas burocráticos. Não
fosse esse fato, jamais a burguesia teria sido expropriada na China e em Cuba.
O Programa de Transição previu, como hipótese improvável, revoluções que
expropriem a burguesia dirigidas por direções pequeno burguesas ou
estalinistas, tal como aconteceu nesses países. Dessa experiência, devemos
tirar a conclusão, pela negativa, da absoluta necessidade do partido
revolucionário, oposta a de Moreno. Este transformou a exceção em regra.
Segundo ele, todas as revoluções deveriam passar por essa fase democrática,
onde não haveria hegemonia do proletariado e a direção caberia a partidos
pequeno burgueses, estalinistas ou, até mesmo, burgueses. Vejamos: “Uma característica de todas as
revoluções democráticas não somente é a mudança de regime, senão o fato de que
quem sustenta o governo “revolucionário” são partidos burgueses ou pequeno
burgueses que controlam o movimento de massas”. E no caso da
“revolução democrática triunfante” do General Bignone, foi a Multipartidária,
frente dos grandes partidos burgueses argentinos, o peronismo e o
radicalismo. Nas palavras de Moreno: “Como conseqüência dessa revolução
triunfante a Multipartidária é o verdadeiro sustentáculo do governo”.
Uma revolução, por ser uma luta pelo poder
entre classes, somente pode ser vitoriosa através de uma insurreição armada.
Moreno contraria também esse princípio básico do marxismo. A sua revolução
democrática dispensa insurreição. Segundo ele: “Para nós a crise
revolucionária e o estalo revolucionário podem não ser sangrentos. Insistimos
que uma revolução é quando se logra um objetivo histórico, concretamente a
derrota de um regime contrarevolucionário e o surgimento de um novo regime
democrático”. Assim,
amesquinhou tanto o conceito de revolução que considerou “revolucionário” o
regime do General Bignone, que era a continuidade da ditadura. Segundo Moreno,
a revolução democrática já seria também uma revolução socialista inconsciente,
o que é um contracenso completo. Toda revolução socialista deve ser consciente
por natureza, porque implica na derrubada e na expropriação da burguesia. A
“revolução democrática” morenista pode ser feita pela própria burguesia e
seria, em si, socialista.
A Teoria da Revolução Permanente considera que a burguesia
não seria mais capaz de realizar a revolução democrática, que até então foi sua
tarefa histórica. Essa tarefa, daí em diante, deveria ser cumprida pelo
proletariado. Este, apoiado no movimento camponês, realizaria a revolução
democrática (derrubada da manarquia e expropriação do latifúndio semi-feudais)
e ao mesmo tempo começaria a realizar as tarefas socialistas (expropriação da
burguesia). As revoluções democrática e socialista fazem parte de um mesmo
processo, porque ambas são feitas pelo proletariado que deve derrubar a burguesia
através de uma insurreição. A revolução democrática deve transformar-se em
socialista organicamente, sem necessidade de nova insurreição porque o
proletariado não necessita fazer uma insurreição contra si mesmo. Por sua vez,
teoria morenista é a completa negação da Revolução Permanente, pelos seguintes
motivos: 1 - por dispensar o partido revolucionário, sendo feita por partidos
burgueses ou pró-burgueses. E esses partidos, que são incapazes de realizar a
revolução democrática, muito menos farão a revolução socialista, como afirma
Moreno, porque jamais a burguesia expropriaria a si própria; 2- por não ser
feita pelo proletariado; 3 – por dispensar a insurreição. Nunca se viu na
história se viu uma classe abrir mão do seu poder pacificamente.
A afirmação de Moreno de que a revolução democrática já seria uma
revolução socialista insciente, mesmo dirigida por partidos burgueses, implica
dizer que esses partidos expropriariam a burguesia, o que é uma incoerência. Na
verdade, as”revoluções” morenistas, democrática e socialista, somente podem
fazer parte de um mesmo processo por não ser nem democrática nem socialista.
Moreno quebra todos os princípios do marxismo: o papel do proletariado, a
necessidade do partido e da insurreição. A revolução deixa de ser a mais aguda
luta de classes, transforma-se numa transação pacífica entre as classes. Não
fazemos injustiça ao considerar a sua teoria como mais uma das tantas versões
social-democratas da transformação pacífica do capitalismo.
Luta Marxista
Abril 2013