O panorama internacional se
instabiliza ainda mais com a intervenção militar russa na Síria, mesmo que seja
limitada e concertada com os Estados Unidos. Na Síria, este encurrala
o regime e põe em risco as bases militares russas de Tartus e
Lataquia. À Rússia não interessa o confronto militar. Precisa de tempo para
fortalecer as suas posições, mas antes que o cerco se feche resolveu reagir
enviando armamento moderno para essas bases e bombardeando o terrorismo sírio,
não sem antes comunicar os seus “parceiros” ocidentais. Não pode permitir a
perda do acesso ao mediterrâneo, garantido pela base naval de Tartus, já
ameaçada pelos terroristas. Putin pretende dar um recado à Turquia, uma das
principais financiadoras do terrorismo na região, e que também controla o
acesso do mar negro ao mediterrâneo. Por ela também passaria o planejado
gasoduto russo para abastecer a Europa sem passar pela Ucrânia. Recep Erdogan
(presidente Turco) e Obama já haviam acertado a criação unilateral de um “espaço
de exclusão aérea” na Síria para proteger os terroristas, o que seria o golpe
de misericórdia no enfraquecido governo Assad, aliado da Rússia.
Putin resolveu
intervir de forma limitada e acobertado pela bandeira do combate ao terrorismo,
coisa que os Estados Unidos alega fazer liderando uma coalizão de quarenta
países. Foi uma jogada de mestre que combina a intervenção armada e a
diplomacia, mas que é ao mesmo tempo muito arriscada. No plano geral, a
iniciativa não pertence à Rússia, mas aos Estados Unidos. Vejam, além da Síria,
a Libia, Ucrânia, Iraque, Irã, etc. A OTAN expande as suas bases aos países da
esfera da antiga URSS, instala mísseis nucleares na Europa, contra os tratados
estabelecidos, e prepara-se para provocá-la através da Polônia, Bulgária,
Romênia, Estônia, Letônia e Lituânia.
Diante da ameaça às suas bases na Síria
e ao governo do seu aliado Assad, restava à Rússia reagir ou capitular.
Resolveu reagir de forma calculada, na exata medida para estancar a ofensiva
imperialista, negociar em melhores condições e ganhar tempo. Além de preservar
os seus interesses na Síria, a Rússia também pretende: aumentar o seu poder de barganha
na Ucrânia; negociar as represálias econômicas do ocidente; fortalecer-se
diante dos atores regionais (Turquia, Israel, Arábia Saudita, Irã); debilitar o
terrorismo, em especial o terrorismo checheno no interior do Estado Islâmico.
Putin também dá garantias a Israel, com quem busca aproximar-se negociando
acordos comerciais e de exploração de gás (Leviatã, no mediterrâneo).
A força dos EUA não é mais a mesma. Intervém
principalmente através dos seus aliados (Turquia, Israel, Arábia Saudita,
Jordânia, etc.), que têm os seus próprios interesses, difíceis de conciliar.
Obama enfrenta ainda uma severa oposição interna (republicanos, parte dos
democratas, pentágono). Alguém sustenta que essa intervenção russa possa ser
também do seu interesse, cuja política para o Oriente Médio encontra-se num
impasse. Obama resiste a um maior envolvimento direto na Síria com medo dos
seus possíveis reflexos eleitorais. Mas, apesar das pretensões limitadas
russas, das garantias oferecidas e de um possível acordo prévio, a situação é
de grande risco. Dentre o “saco de gatos”, envolvendo a oposição interna e os
aliados dos Estados Unidos, não faltará quem queira fazer uma provocação
militar à Rússia.
A capitulação da esquerda
Na Síria, repete-se a já tradicional
capitulação da esquerda: uma parte apóia o imperialismo EUA/Europa, sob o
disfarce do apoio a uma fantasiosa revolução síria (LIT/PSTU, UIT/CST, PTS/MRT,
etc.). Outros menos cotados apóiam a Rússia, através das palavras de ordem:
Viva Putin e Frente Única.
O primeiro bloco diz: “Não aos bombardeios
russos na Síria” (LIT); “Fim dos bombardeios russos na Síria!” (UIT). Mesmo que
essa esquerda também fale contra os bombardeios americanos, na prática, sempre
apoiou essa intervenção imperialista, em nome da defesa da suposta revolução
síria, e a exigiu pedindo “armas para os rebeldes”. Distorcem de tal maneira a
realidade que, segundo sua versão, os bombardeios americanos seriam contra a
“revolução” e não contra o regime sírio. A sua verdadeira aspiração é que o
imperialismo deixe de bombardear os “rebeldes” (ou seja, os terroristas) e o
faça contra Assad, com quem não deveria negociar. Essa distorção é tão acintosa
que o próprio imperialismo e a sua imprensa admitem financiar tais “rebeldes”,
inclusive, o “moderado” Exército Sírio Livre, considerado revolucionário pela
esquerda. Este, o ESL, inclusive participa publicamente das reuniões de cúpula
imperialista, conhecidas como “amigos da Síria”. Existe outro grupo, o PTS
argentino, MRT no Brasil, ex-LER, que supostamente não apóia qualquer dos
lados, mas compartilha com os outros a defesa da “revolução síria”, sendo assim
uma variante política dos demais.
Esse bloco defende a “revolução síria”
de 2011, que teria sido esmagada a ferro e fogo pela ditadura sanguinária de Bashar
al-Assad, mas que contraditoriamente sobreviveria até hoje através de algum
setor “rebelde revolucionário”, que somente poderia ser representado pelo Exército
Sírio Livre. Somente essa esquerda não sabe que o ESL tem assento no bloco imperialista
“os amigos da Síria”; que também é financiado pelo imperialismo e seus
prepostos e se articula com os outros grupos terroristas (al-Qaeda, Estado
Islâmico, etc.). Não existe grupo independente do imperialismo e muito menos
revolucionário. Isso é uma invenção vergonhosa para justificar a capitulação.
A pretensa revolução de 2011 é uma
fantasia. Por revolução o marxismo entende a luta pelo poder de uma classe
contra outra, ou seja, do proletariado contra a burguesia. O proletariado na
Síria não tem qualquer representante e muito menos poderia sê-lo algum grupo
fundamentalista. As mobilizações de 2011 não foram uma insurreição do
proletariado pelo poder. E hoje não existem mais. Toda a luta contra o regime
se transformou em guerra civil, sob absoluto controle militar dos grupos
terroristas a serviço do imperialismo. A possível queda de Assad levaria ao
domínio do fundamentalismo (vide Afeganistão, Iraque e Líbia). Nesse caso,
esses grupos dirão na maior cara de pau que a “revolução” teria sido
“seqüestrada”, ou seja, teria triunfado a contra revolução que eles mal
disfarçadamente apoiaram.
De outro lado, existem os defensores do Viva
Putin e da Frente Única com ele. Estes, colocam nas mãos da Rússia a sorte e a
independência da Síria, como se esta lutasse de alguma forma pela soberania
síria. Não é verdade. A Rússia luta exclusivamente pelos seus interesses nacionais.
Não pode conquistar a sua independência nacional a não ser expandindo a sua
influência, que leva necessariamente ao surgimento de um novo imperialismo. A
parca influência que consiga será colocada a serviço de algum acordo podre com
o imperialismo dominante. A defesa de Assad é apenas moeda de troca nessa
negociação.
Apoiar a política russa na Síria é uma
capitulação. A palavra de ordem de “frente única com a Rússia” significa apoio
à política externa russa na Síria, muito embora, seja correto no confronto
entre dois inimigos tirar proveito da divisão entre eles, ou seja, fazer frente
única com um deles contra o outro. Entretanto, essa frente única deve ser
concreta e determinada. No caso sírio, apoiamos os ataques russos contra o
Estado Islâmico, a al-Qaeda, a Ahrar al-Sham, o Exército Sírio Livre, porque
estes representam o fascismo árabe aliado ao imperialismo dominante contra a
independência nacional síria. É muito diferente de propor frente única genérica
com a Rússia, porque isso implica apoiar toda a política externa russa para a
Síria, inclusive, a autorização de vôos de Israel sobre o espaço aéreo sírio, a
contenção do Hesbolah e do Irã, e a submissão da Síria aos seus interesses.
Os apoiadores incondicionais de Putin
mancham a bandeira do trotskismo tanto quanto os defensores da “revolução
síria”. A IV Internacional defendeu a URSS contra o imperialismo, mas não
defendeu a política internacional de Stálin. Defendeu a expropriação da
burguesia polonesa pelo exército vermelho, mas não defendeu a invasão da
Polônia, porque essa invasão era fruto de um acordo com Hitler para a sua
divisão entre Rússia e Alemanha. Os interesses do proletariado internacional era
o único critério da sua política. Em nome dele não se poderia apoiar a política
externa de Stálin. É preciso saber determinar exatamente o que e quando apoiar.
Embora Putin não seja Stálin, o método é o mesmo na atual ocupação russa da
Síria. Nenhum desses “trotskistas” passou na prova da independência de classe
do proletariado.